(Continuação daqui)
9. Para branquear
Um Governo populista em Portugal, uma das primeiras medidas que tomaria seria acabar com a Ordem dos Advogados. As próprias palavras "Ordem" e "Bastonário" são de arrepiar numa sociedade moderna e democrática. Mas não seria pelas palavras que um Governo populista acabaria com a Ordem dos Advogados, tirando-lhe todos os privilégios e reduzindo-a a uma mera associação profissional regulada pela lei geral das associações.
Seria por uma razão muito mais séria - a de que a Ordem dos Advogados foi criada para servir o bem-comum dos portugueses e encontra-se agora a servir e a legitimar uma auto-proclamada elite que inclui muitos criminosos. Na prática, tornou-se, em variadíssimas instâncias, uma verdadeira corporação de criminosos.
É isso que este post pretende mais uma vez ilustrar com um caso que está agora nas notícias.
A Ordem dos Advogados foi criada numa altura (1926) em que o número de advogados no país era pequeno e em que eles se conheciam uns aos outros - na realidade, à época havia apenas duas universidades a produzir advogados, a Universidade de Coimbra e a recentemente criada Universidade de Lisboa.
O propósito da Ordem era o de garantir ao povo a credibilidade dos advogados - uma classe a quem o povo delega, em muitas e delicadas situações, substanciais poderes de procuração -, e isso era possível quando o número deles era pequeno e eles se conheciam todos uns aos outros, muitos desde os bancos da universidade.
A situação mudou radicalmente nas últimas décadas. Existem agora muitas universidades produzindo advogados, eles já não se conhecem uns aos outros, o número de advogados inscritos na Ordem ultrapassa os 40 mil, um número que torna impossível aos dirigentes da Ordem conhecer os seus associados e garantir a sua credibilidade pessoal e profissional.
O resultado é que muitos advogados criminosos aproveitam a cobertura de credibilidade que a Ordem lhes confere e cometem os mais variados crimes e abusos ao abrigo do seu estatuto, e a Ordem para não deixar contaminar a integridade dos advogados competentes e honestos, não tem outra solução senão dar cobertura aos advogados criminosos.
O caso que envolve a dirigente do Chega, e que é relatado em baixo, é exemplar. Essa dirigente que é advogada, pede seis mil euros a um colega advogado, com a promessa de lhos devolver no prazo de seis meses, acrescidos de juros de quatro mil euros (isto é, a taxa de juro do empréstimo é de 66,6% por seis meses correspondente a 133,3% ao ano). Este contrato foi registado na Ordem dos Advogados.
O resto da história está contado na peça pelos jornalistas da SIC.
Aquilo que a peça não conta é que este contrato é ilegal porque envolve um crime praticado pelo advogado que empresta o dinheiro - o crime de usura (cf. aqui). Que a Ordem dos Advogados tenha aceitado registar este contrato e dar-lhe credibilidade pública só prova que a Ordem está lá para branquear os crimes dos advogados, e não mais para garantir a sua credibilidade pública.
O caso que afastou Ana Caldeira
Segundo o despacho de acusação a que a SIC teve acesso, em março de 2022, Ana Caldeira, advogada de profissão, disse a um antigo sócio que tinha uma cliente a precisar de 6 mil euros com urgência. Para convencê-lo a emprestar o dinheiro, garantiu-lhe que em seis meses receberia de volta 10 mil euros.
O acordo entre os dois ficou selado, num contrato de confissão de dívida e num Termo de Autenticação, registados no site da Ordem dos Advogados.
Os dois documentos estavam supostamente assinados por Maria Amélia Martins, a suposta cliente de Ana Caldeira que precisava do dinheiro com urgência. Acontece que Maria Amélia Martins morreu em março de 2015.
Segundo o despacho do Ministério Público, Ana Caldeira falsificou a assinatura de Maria Amélia Martins "com o objetivo de fazer sua a quantia de 6 mil euros".
Ana Caldeira ainda devolveu os seis mil euros, mas ficou a dever os juros prometidos. Agora está a ser julgada pelos crimes de burla qualificada e falsificação de documentos.
Fonte: cf. aqui (ênfases meus)